domingo, 16 de dezembro de 2012

Porque compões pá?


Porque compões pá?
Esta é a pergunta óbvia que eu merecia que me fizessem...
Lamentavelmente, a questão de eu ser ou não compositor, é absolutamente irrelevante para a maior parte dos que me “cercam” no dia a dia. Cada vez me sinto mais isolado enquanto criador e, no entanto, paradoxalmente, nada disso me importa. A aura romântica de alguém que compõe sob uma atmosfera de inspiração descontrolada, sombria, doentia ou exaltada é algo que, curiosamente, ainda sinto apesar de não me identificar pessoalmente com este paradigma da figura do compositor e sua projeção artística, até porque esta imagem faliu gradualmente depois da segunda grande guerra, e nada há a fazer em relação a isso. O mais singular é que eu próprio nunca me senti na pele de tal tipo de compositor porque sempre me senti mais completo, e com feedback mais ou menos imediato, no papel de professor. O que agrava tudo isto é que na missão de ser professor tudo mudou de mau para muito pior ao longo da última década, hoje só dentro da sala de aula e com os alunos é que nos podemos iludir, fora isso, nada mais interessa. Mas voltando ao tema deste pequeno texto, sempre me senti como compositor (não por ter tido aproveitamento positivo num qualquer curso de composição) uma vez que já o fazia mesmo antes de o estudar. Desde que comecei a compor música, com maior ou menor frequência, sensivelmente depois de 1990, experimentava a exaltação, que uma simples nota escrita provocava em mim, e perguntava-me a mim mesmo como tinha sido possível eu ter juntado um som aos outros! Isso foi algo que nunca mudou e depois de tantos anos (mais de 20!), pergunto-me porquê? Tive tantos “contratempos”, para lhe chamar um nome suave, por compor! Tive que enfrentar um mau curso, um professor castrador de gerações, tive que encarar os invejosos e os medíocres, tive que tentar sempre ser professor, e outras tantas tarefas inerentes à minha passagem por cá. Mas para quê tudo isto? Tantos são os que dizem não valer a pena a pessoa aborrecer-se...
No entretanto, deixemo-nos de devaneios, este não é o país da cultura, a grande parte das pessoas não valoriza coisa nenhuma que não seja a aparência daquilo que supostamente são, não diferenciam o trigo do joio, as instituições culturais são orientadas no que fazem ou deixam de fazer por poderes mais fortes do que as suas próprias linhas de pensamento; por outro lado as instituições não deixam de ser as pessoas que nelas mandam e por isso mesmo foram as “escolhidas”. Tendo em conta esta introdução e para quem estiver a pensar que agora não sairei mais deste discurso de vitimização do artista mal compreendido, desengane-se. Não é por isso que o estou a escrever. A razão que me leva a deixar como públicas estas palavras é bem mais interessante e prende-se com a atitude perante os outros e perante mim próprio no que diz respeito aquilo que faço, que é como já perceberam, compor e ensinar a compor e fazer com que os alunos percebam alguma coisa de música. O que hoje me leva a escrever estas linhas é o facto consumado em mim mesmo de que me estou literalmente “nas tintas” para todo o tipo de interesses e bajulices que seriam necessários para que a minha música fosse, eventualmente, mais ouvida e tocada. Reparem que este não é o discurso de quem perdeu ou está a perder, pelo contrário! Assumo na plenitude total das minhas capacidades mentais que não me interessa praticamente coisa nenhuma em termos profissionais que não seja o escrever música, nem que seja, como disse em tempos, para a minha “gaveta”. Se sobrevivi ao terror do curso de composição da ESMAE nos anos que por lá passei também vou sobreviver a tudo o resto.
Escrevo agora este memorial por sentir algumas correspondências entre o ano de 2012 e o ano de 1996 no que à minha produção musical concerne. O ano de 1996 foi um ano particularmente atribulado e excitante para mim, tinha acabado o curso de composição, tinha começado a trabalhar onde ainda hoje trabalho, e acima de tudo, estava a compor com um ritmo muito marcado, cada momento, cada bocado de tempo, tudo era aproveitado para compor, quando viajava, quando esperava por alguém, quando ensinava, a cabeça e os sons estavam sempre ligados como se um cordão umbilical se tratasse. Digo isto, sem explicar em detalhe, mas a verdade é que um compositor não compõe apenas quando se chega perto do papel, ou do computador, compõe sempre e depois só tem que passar ao chamado suporte, a partitura, a ideia mais próxima daquilo que ouve. O ano de 2012 foi igualmente marcado por um ritmo mais acentuado na minha produção escrita musical.
Escrevi aliás este ano de 2012 mais obras do que em 1996, onze obras completas fora as que ficaram em standby, a saber: meu madrigal de madrugada – (Orquestra de Cordas, Flauta, Harpa e Piano); Like a bandoneón – (Quarteto de Saxofones); Urban Walk – (Marimba de 4 oitavas – versão pequena); Urban Walk – (Marimba de 5 oitavas); Urban Walk – (Duas Marimba de 5 oitavas); Old fashioned pieces for Harp – (Harpa); 10 peças infantis (Piano); Pequenas histórias de um fagote – (Fagote e piano); Pequenas histórias de um Clarinete - (Clarinete e piano); O Elefante e a Pulga – (Coro infantil e piano); Pequenas histórias de um Harpa (Harpa), todas elas editadas, ou a editar, pela AvA Musical Editions. Apenas uma destas obras foi apresentada na sua totalidade em público! Neste momento tenho em mãos uma peça para Saxofone barítono e electrónica, um quarteto de cordas, uma obra electrónica, e uma ou outra que não devo relevar. Estes momentos de escrita musical funcionam para mim essencialmente como um meio de sobrevivência, não aguentaria viver o que estou a viver no meio em que me movo sem recorrer a estes momentos de criação, feita em minutos, horas e pouco mais, entre muitíssimas tarefas a que a minha condição de pai, professor, cidadão aparentemente apresentável, etc., me sujeitam. Repare-se que, compor música, para além de ser aquilo que me faz sentir verdadeiramente vivo, é também, um acto de higienização intelectual. Não sobreviria se perdesse isso!
Também a ideia de perder a memória me assusta porque tenho-a sempre muito presente (do género da do elefante) e, apesar de me pesar como uma pedra de granito, é o que me resta para estar consciente, lúcido e convicto das minhas posições. É bastante fácil aos meus “não amigos” dizerem, “lá está ele com o seu mau feitio... as coisas que ele sabe e pensa são certas, mas era melhor não as dizer, não são socialmente aceitáveis e inteligentes, assim nunca pertencerá a nenhum grupo, nunca será nem daqui nem dacolá”. E eu respondo que é assim mesmo, não pertenço a lado nenhum senão a mim mesmo, mesmo que orgulhosamente só, os tachos, lobbies, grupos e afins são para os outros, não para mim. Para concluir, volto a reforçar que o acto de compor e também ensinar os mais jovens a fazê-lo, é um privilégio, nem todos o têm, e, quanto a tudo o resto, as imprecisões como alguns lhe chamam, o esbanjar de incompetência, as fanfarras, as palminhas, os bombos, as latas e os pinotes, parafraseando Mário Sá-Carneiro, não são mais do que verbos de encher ou por encher, murchos, moles e colados uns aos outros, pura matéria plástica, como compôs Frank Zappa, Plastic people.

domingo, 18 de novembro de 2012

GENEROSIDADE


Ontem, no Theatro Circo em Braga revivi com emoção a música e a pessoa de António Pinho Vargas. Já não o ouvia a tocar desde o final dos anos oitenta, numa altura em que o seu piano era apoiado pelo irmãos Barreiros e pelo José Nogueira em quarteto, isto no Teatro Carlos Alberto no Porto. Foi arrepiante ouvir outra vez, a dança dos pássaros, Tom Waits, etc. Está tudo lá ainda, mas mais refinado, as articulações a expressividade, os súbitos e curtos silêncios em jeito de hoquetus, e, acima de tudo, aquelas melodias, de uma beleza inexplicável, infinitamente lusitanas no seu contorno e perfil linear. Enfim, para além de toda aquele grande jazz português que reouvi, as palavras de APV – que separaram, em jeito de prelúdios, os momentos exclusivamente musicais – sempre sábias, lúcidas e, mais do que tudo, generosas. Se alguma palavra pudesse definir o dia de ontem, antes do concerto – em que tive o prazer da companhia de APV num longo café adiado há muito tempo, anos mesmo – durante o concerto, e depois do concerto essa palavra será GENEROSIDADE. Possivelmente, para alguns parecerá um lugar comum, mas não o é, uma vez que é cada vez mais difícil encontrar esta palavra expressa e encarnada na alma das pessoas. Numa altura em que tanto se “partilha” e tão pouco se dá as “gentes” são cada vez menos generosas, e uma grande parte não o é sequer.
Obrigado, António.

(foto da culturgest)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

simples versus complicatus (não, não é a flor!)



É assim, em Lisboa as coisas funcionam de uma forma mais óbvia, mais simples, mais assumida. Ou seja, Pequenos Cantores do Conservatório de Lisboa e a Camerata de Lisboa, maestrina Joana Carneiro, álbum de Natal, Canções de Natal Portuguesas, compositores contemporâneos portugueses, como Carlos Marecos, Vasco Pearce de Azevedo, Sérgio Azevedo e João Madureira, todas os temas escritos tendo como ponto de partida o cancioneiro tradicional português.
A ser no norte, não podia ser assim, não, nem pensar! Tinha que ser uma coisa em Grande! O maestro tinha que ser estrangeiro, de preferência com um nome bem complicado de pronunciar, as músicas teriam que incluir obrigatoriamente, porque toda a gente gosta, o "A Todos um Bom Natal", o "Noite Feliz" e o "Jingle Bells", o cancioneiro tinha que ser da freguesia de nascença da pessoa que organizasse o evento e posterior gravação, e quanto aos compositores é melhor ficar por aqui neste breve, irónico e patético comentário...

sábado, 13 de outubro de 2012

Um astro doido a sonhar


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...


Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


Paris - maio de 1913.

Mário de Sá-Carneiro